“O transporte coletivo não é objeto de desejo de ninguém.” A frase é do presidente da Companhia Metropolitana de Transporte Coletivo (CMTC), José Carlos Xavier, o Grafite, e sintetiza muito do que é o setor dentro da administração pública: um nó difícil de desatar, em que mesmo toda a vontade política será, no máximo, recompensada com um aceno da população. Em outras palavras, quando a situação está ruim, o ônus é alto; quando está sob controle, o bônus é raro.
A explicação é simples: todo usuário do transporte público preferiria ter mais conforto. E mais conforto é algo que se traduz por transporte individual. “Transporte coletivo, seja de ônibus, de trem ou de avião, significa, no fim das contas, que sua privacidade está reduzida. E todo ser humano gosta de ter seu direito à privacidade preservado”, explica Grafite.
De fato, que ninguém espere do ônibus os benefícios do carro ou da moto. Mas, de forma quase irônica, as benesses trazidas pelos veículos individuais se voltam contra todo o sistema. “O trânsito congestionado de uma metrópole leva a uma anedota que é uma reflexão: deixamos de andar a pé e gastamos milhões e milhões para construir pistas, viadutos, pontes e tudo o mais para, no fim, ficar parado em engarrafamentos. Se era para ser assim, não seria melhor, então, ter continuado a andar a pé?”, conta o presidente da CMTC.
Grafite conduz o debate exatamente para o rumo que a discussão toma na administração de Goiânia: a humanização do transporte público, item cuja carência, no fim das contas, é o que mais afasta seus usuários. E não são poucos os que vêm se afastando: o que se vê é que o número de usuários do sistema não está aumentando nos últimos anos; em contrapartida, o número de setores a ser atendidos por ônibus não para de crescer.
A explicação é simples: quando se constrói um loteamento, geralmente a Saneago e a Celg — no caso de Goiás — já fazem a infraestrutura básica; quanto ao transporte, constroem primeiro para depois pedir as linhas de ônibus. O resultado é que o perímetro de atendimento de usuários do transporte coletivo quadruplicou. “Isso influencia em vários aspectos, entre eles o do tempo da viagem, o número de passageiros transportados e o gasto de combustível”, relata o chefe de gabinete da CMTC, Domingos Sávio Afonso.
Além do crescimento desse perímetro de circulação dentro da cidade, a integração do sistema trouxe também outros problemas. O preço diferenciado da passagem do Eixo Anhanguera — única linha administrada pelo Estado — faz acontecer coisas pitorescas. “No Terminal Praça da Bíblia é comum ver pessoas chegando a pé, de manhã, após caminhar até dois quilômetros, para pagar R$ 1,35. Ou seja, deixam de usar a linha alimentadora para economizar ao ir para o trabalho”, diz Sávio. O mesmo não ocorre no retorno. “Aí, como já pagaram R$ 2,70, seguem até o ponto mais perto de casa.” O que ocorre é uma descompensação da carga transportada entre o período matutino e o vespertino, nas linhas alimentadoras.
Tarifa
A cada aumento de tarifa, como ocorreu em maio, recrudescem as críticas sobre o sistema, controlado há quase 40 anos por basicamente as mesmas empresas, hoje reunidas em um consórcio a Rede Metropolitana de Transporte Coletivo (RMTC). O aumento acima do índice de inflação para o período faz com que o volume de reclamações suba o tom e se multiplique.
A equação do transporte coletivo não é simples, ao contrário do que pensa o cidadão médio. Ou mesmo autoridades experientes. Uma delas, o ex-prefeito Iris Rezende (PMDB), achou que poderia resolver o drama do transporte em seis meses. Em 2004, a questão se tratava de um problema tão sério que virou uma das principais bandeiras daquela campanha eleitoral. O peemedebista tinha duas metas: asfaltar todas as ruas habitadas de Goiânia até o fim de seu mandato e, de janeiro a junho de 2005, mudar da água para o vinho a história do transporte coletivo na capital.
Em relação ao segundo desafio, o primeiro foi brincadeira de criança. Até porque a pavimentação depende apenas de priorização de recursos financeiros. Com o transporte, não: as variáveis postas são, por vezes, menosprezadas, ignoradas ou até desconhecidas. Um exemplo prático, já vivido por todos aqueles com anos de rodagem em ônibus: por que às vezes se espera dezenas de minutos, até horas, por um determinado coletivo e quando, enfim, ele surge, traz consigo um ou dois da mesma linha? A resposta está no fluxo irregular do tráfego.
Então Iris teria sido ingênuo ou soberbo? Não, talvez apenas estivesse fazendo jogo político-eleitoral — mesmo porque além da cidade que viria a governar, a rede de transporte coletivo abrange outros 17 municípios.
O fato é que hoje o transporte coletivo, se preocupa — e sempre vai preocupar qualquer gestor —, não é mais candidato principal a centralizar a campanha eleitoral em Goiânia. Isso significa que, de alguma forma, a realidade foi transformada nos últimos anos em termos de ônibus, terminais, pontos e outros itens do sistema, o que não deixa de ser mérito do peemedebista e de seu sucessor, Paulo Garcia, já que Goiânia é o coração do sistema metropolitano.
BRT, grande passo para a mobilidade
Foi-se a época em que se dissociava a questão do transporte coletivo do drama do trânsito. Mais do que nunca esse enfoque unificado deve ser o que ganhará corpo na discussão dos problemas da cidade, já a partir das próximas eleições municipais. Goiânia está travando, mas sua configuração viária ainda desperta a admiração de quem vem de fora, experimentado no drama de outras localidades. Foi o que ocorreu com o pessoal que recentemente fez o trabalho de medição da quantidade e da qualidade do tráfego, com uma aparelhagem específica para contagem de veículos.
“Eles se impressionaram com o potencial de fluxo das vias, em comparação com o de cidades como Salvador, Belo Horizonte e outras”, relata Domingos Sávio Afonso, do gabinete da CMTC. O que falta, parece, é gerenciar melhor o fluxo pelas ruas para garantir que o trânsito flua. Ou seja, há salvação para o trânsito da Grande Goiânia.
Se não há um ponto de saturação total — como imaginam que já exista a maioria dos que transitam pela cidade —, o que pode ser feito para que não se chegue a ele ou, melhor ainda, para que o ritmo das políticas públicas faça com que se afaste mais dele? Algo certo e básico é o incentivo ao uso do transporte coletivo. No atual contexto, cada ônibus carrega em si dezenas e dezenas de motoristas e motociclistas em potencial — basta-lhes que tenham a chance de poder financiar seu veículo; o objetivo do poder público precisa ser fazer com que cada motorista e motociclista seja disponível a se tornar, pelo menos com certa frequência, um passageiro de ônibus.
O BRT (“bus rapid transit”, ou “trânsito rápido de ônibus”), mais do que um tipo de veículo é uma forma de priorização: uma via condutora elaborada para multiplicar a velocidade do transporte coletivo. Ao lado do veículo leve sobre trilhos (VLT) — que deverá ser inserido no Eixo Anhanguera, pelo governo estadual —, o BRT é a saída que o poder público — no caso, a Prefeitura — buscou para elevar a quilometragem percorrida por hora pelos ônibus do sistema. Estima-se que os usuários do eixo Norte-Sul, onde o BRT será implantado, terão pelo menos meia hora disponível a mais por dia. Não deixa de ser um atrativo para quem às vezes vai perder tal tempo dentro do carro, sujeito ao estresse e a acidentes e multas.
Investimento
A princípio o Eixo Norte-Sul integraria também parte de Aparecida, mas a prefeitura local não bancou o trecho do município. A extensão da via que abrigará o BRT foi reduzida de 26 quilômetros para 21,8 quilômetros, se iniciando no Terminal Cruzeiro do Sul, passando pelas avenidas Rio Verde, 90 e Goiás Norte e finalizando-se no Terminal Recanto do Bosque, na região noroeste da capital. Em conjunto com semáforos integrados, a viagem deve corresponder ao que propõe o nome do sistema.
Outra preocupação da CMTC é a interação do ônibus com a bicicleta, meio de transporte bastante comum na periferia. Para isso já foram instalados bicicletários em vários terminais. Curiosamente, mas não por acaso, os mais utilizados são os mais distantes do Centro, como os dos terminais Goiânia Viva e Maranata em relação ao Bandeiras, por exemplo.
Sem passagem não há deslocamento
É simples: para destravar o transporte coletivo é preciso que seja desobstruída sua passagem. É o que foi feito, de modo inédito em Goiânia, por meio do Eixo Universitário, que uniu a Praça Cívica ao Terminal Praça da Bíblia. Esta certamente está cotado como o maior legado do atual mandato do prefeito Paulo Garcia: recuperar a hoje precária trafegabilidade dos coletivos no curto trecho de dois quilômetros e meio, que se transformam em demorada travessia no horário do rush — estudantes da UFG, PUC-GO e Senac Cora Coralina, faculdades próximas, sabem bem disso.
Se o trecho é pequeno em extensão, é grande em conceito: dar prioridade total a quem se desloca por transporte público. A via tem também fiscalização com câmeras e multas registradas por aparelhos fotossensores para condutores que não respeitarem o espaço dos ônibus, além de semaforização inteligente para adequar-se ao fluxo dos ônibus, à semelhança do BRT. E o mais importante: o projeto serve de piloto para implantação da inovação em outras vias. Ainda em decorrência da outorga onerosa de R$ 44 milhões pela recente licitação do transporte coletivo, as empresas de ônibus deverão entregar à Prefeitura projetos de corredores preferenciais para as avenidas T-7, T-9, 85, T-63, Independência e 24 de Outubro.
Se há a luta do Paço para abrir espaço para a mobilidade dos coletivos, do outro lado há uma corrente de interesses que são desafiados. “Um grupo de vereadores veio aqui para defender o dono de um posto de gasolina da Rua 10, insatisfeito porque um retorno foi fechado pela obra e ele havia perdido clientes”, conta o presidente da CMTC, José Carlos Xavier, o Grafite. Outro caso de preocupação de legisladores com questões individuais em detrimento do bem coletivo foi o de um vereador, proprietário de estabelecimento comercial na mesma via, que estava indignado com a obra — que afetaria sua clientela pela eliminação das vagas de estacionamento — e foi se queixar, um tanto alterado, com o presidente da CMTC. “Infelizmente, enfrentamos essas dificuldades até por parte dos políticos, que deveriam entender as necessidades da gestão da cidade.”
Humanização
A humanização do sistema precisa passar também pelo trato dos passageiros. Para se ter ideia do que é o sistema de transporte coletivo em Goiânia já houve um tempo em que os terminais eram chamados comumente de “currais”. Nada mais sintomático. Se os terminais estão reformados e é bastante raro hoje que se use palavra tão inapropriada à dignidade de seus usuários, o transporte, mesmo com frota renovada, dá provas constantes de que está longe do ideal nesse aspecto.
Um servidor da CMTC admite que ainda há despreparo por parte de fiscais e motoristas. “Um dia desses eu observava o embarque em um terminal. Havia um cadeirante com quem ninguém se preocupou. Todos os passageiros entraram no ônibus e ele ficou de fora, sem auxílio. Chamei o fiscal e apresentei-lhe o caso”, conta. Por parte de motoristas também há muita desorientação. “Muitos não sabem, por exemplo, que não devem nem podem obrigar quem tem passe livre a descer se a carteirinha estiver com problema na hora de passar na catraca”, conta.
Outra caso que o mesmo servidor exemplifica foi o de uma senhora, funcionária do Hospital das Clínicas, que ficou revoltadíssima por ter chegado atrasada ao trabalho depois de um motorista não ter parado para ela no ponto de ônibus, que ficava perto do Terminal Goiânia Viva. “Muitos motoristas pensam que a pessoa, por estar próxima ao terminal, poderia se deslocar até lá dentro. Só que a obrigação dele é parar. A senhora veio aqui [na CMTC] muito nervosa e estava completamente certa.”
Um fator no qual fica complicado de observar melhora, admite a CMTC, é a quantidade de gente nos terminais em horários de pico. “As pessoas que vão ao exterior costumam usar o exemplo de cidades europeias para dizer que lá não tem esse problema. Só que vão lá como turistas e se deslocam no meio da manhã ou da tarde, em horários que geralmente não há tumulto. Mas qualquer cidade do mundo, São Paulo, Tóquio ou Paris, tem terminais lotados em horários de pico”, diz Grafite.
Fonte: Jornal Opção
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