quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Os extremos se encontram em Goiânia


Muitos se espantam com a desigualdade social da capital, mas é a própria qualidade de vida da cidade que atrai, indistintamente, os muito pobres e os muito ricos
Fotos: Jornal Opção
Parque Vaca Brava, cuja certidão de nascimento virou até objeto de disputa eleitoral, e área de risco no Setor Negrão de Lima: faces opostas de uma cidade onde todos buscam oportunidades
Elder Dias
Música feita por Gilberto Gil e os Paralamas do Su­cesso e que alcançou relativo sucesso com o grupo na década de 80, “A Novidade” conta a história de uma sereia que encalha em uma praia tropical. Logo a notícia se espalha e a criatura se torna cobiçada por duas turmas: o primeiro grupo a queria por sua beleza e por vaidade e, por isso, somente a contemplava da cintura para cima; o outro lado, dos que pretendiam apenas satisfazer a necessidade imediata do estômago vazio, só conseguia enxergar seu “grande rabo de baleia”. Rapi­da­mente, instala-se a discórdia, desenrola-se o caos e o “milagre risonho” pela presença da sereia se transforma em “pesadelo medonho”. A “guerra entre o feliz poeta e o esfomeado” estraçalha a “sereia bonita”, “despedaçando o sonho pra cada lado”. E o refrão da canção resume o drama: “Ó, mundo tão desigual:/ De um lado, este carnaval/ De outro, a fome total”.
 
Goiânia não tem praia, mas em 2008 e às vésperas de a cidade completar 75 anos, um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) encalhou às margens do Paço e trouxe uma novidade que não foi engolida pelo então prefeito Iris Rezende (PMDB), que acabara de ser reeleito em primeiro turno, com alta aprovação. Verdadeiro presente de grego na data do aniversário, o documento apontava a capital goiana como a cidade mais desigual da América Latina. Iris se indignou contra os dados como poucas vezes  fez na vida política e chegou a desafiar os representantes da entidade internacional a uma visita para que ele pudesse desmentir, “in loco”, o que apontavam os números frios.
 
Em 2010, outro relatório, “O Estado das Cidades do Mundo 2010/2011: Unindo o Urbano Di­vidido” — apresentado no Fórum Urbano Mundial da ONU, realizado no Rio —, confirmou o Brasil como o país com maior “distância social” na América Latina. Na mesma papelada, lá estava Goiânia, líder entre as cidades brasileiras e 10ª colocada no ranking mundial das maiores diferenças de renda entre as classes de maior e menor poder aquisitivo.
 
Agora, às vésperas de novas eleições municipais, surge de novo um relatório internacional com o mesmo mote: Goiânia seria a cidade do Brasil e da América Latina em que a sereia da música dos Pa­ralamas seria disputada por duas turmas — ricos muito ricos e po­bres muito pobres.
 
A primeira observação a ser feita é sobre a clara jogada eleitoreira que vem juntamente com a pauta — o que interessa, obviamente, à oposição ao Paço. A segunda é que não é bem assim. A desigualdade social em Goiânia contém uma meia verdade: há, sim, uma classe abastada na capital, com dinheiro sobrando, literalmente. É a parte que estica a desigualdade para cima, em relação a outras capitais brasileiras. Mas, do outro lado, o dos miseráveis, ao contrário do que se pensa, a corda não é puxada para baixo da forma terrível como creem (ou querem fazer crer) os mais alarmistas ao jogar os dados da ONU sobre a mesa. Não há em Goiânia miseráveis mais miseráveis do que há em qualquer outra capital.
 
Mas qual é o enigma a ser desvendado pelos índices crus e tão desfavoráveis da ONU que tanto chatearam Iris Rezende? A resposta da charada pode estar, por mais irônico que pareça, exatamente no ponto que é o ressaltado com mais orgulho pelos próprios políticos e também pelo restante da população: a excelência em qualidade de vida. É esse fato que causa, em última instância, a estatística negativa no que diz respeito à desigualdade social.
 
Goiânia é uma cidade atraente. Nas estatísticas, está entre as capitais já consideradas consolidadas — excetuam-se as de Estados que eram territórios ou criados recentemente, como Palmas, no Tocantins —, que mais atraem para si uma enorme população, boa parte de outros Estados. Esse contingente vem em busca de melhores condições de vida, cada um a seu modo. Mas não só de pobres se constitui essa massa: há também, por exemplo, executivos de grandes empresas e indústrias da região metropolitana e de outras cidades. O grande desenvolvimento do Estado nas últimas décadas possibilitou também esse outro tipo de fluxo migratório.
 
No fim das contas, isso quer dizer que, em busca de “melhor qualidade de vida”, Goiânia virou parada tanto para quem está em situação cômoda financeiramente como para gente que vem tentar a sorte. Nesse sentido, quando quiseram jogar no colo de Iris Rezende a responsabilidade pelos números ruins — e quando fazem o mesmo, agora com Paulo Garcia (PT) — criaram algo que, por mais contrastante que seja, se torna uma forma de reconhecer que a cidade tem uma administração eficiente, a ponto de ser um chamariz para tanta gente.
 
Mas é bom que se observe: como qualidade de vida e desigualdade social são causa e consequência uma da outra não devem ser dados nem méritos nem deméritos para apenas um ou dois prefeitos. Uma cidade construída, planejada (e “desplanejada”, em muitos casos) como é a Goiânia de hoje é o resultado do processo ativo de todas as suas décadas. 
Em recente entrevista como candidato, concedida à TV A­nhanguera, o prefeito Paulo Garcia foi questionado exatamente por esse aparente paradoxo: como dizer que Goiânia é a cidade que tem a melhor qualidade de vida do Brasil se a cidade também tem a maior desigualdade econômica da A­mérica Latina? E a repórter provocou: “Qual a parcela de culpa da sua gestão?” Paulo Garcia respondeu que sua culpa era “nenhuma”, deu a César o que era de César, transferindo a afirmação sobre a qualidade de vida na capital para institutos nacionais como o Ins­tituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) — e internacionais, e arrematou: “A desigualdade se trata de um fenômeno que o Brasil haverá de vencer à medida que nós façamos inclusão social”.
 
De fato, a desigualdade social não nasce de um dia para o outro e nem acaba da mesma forma. Um país com a história de flagrantes diferenças entre pobres e ricos, como o Brasil foi durante mais de 500 anos, não tem como acabar com as mazelas das castas socioeconômicas pelo estalar de dedos de algum governante. O fato que se processa em Goiânia ocorre da mesma maneira em todo o restante do País.
 
Desigualdade não é de agora, diz professor da UFG
 
Pesquisador do tema da desigualdade social, o professor e cientista social Dijaci David de Oliveira, da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (UFG) acredita que a política de distribuição e transferência de renda do governo federal nos últimos dez anos, cujo instrumento mais conhecido é o programa Bolsa Família, colaborou para uma relativa amenização dos contrastes sociais.
 
“Na verdade, a desigualdade social cresceu desde a década de 1970, quando não fez a distribuição das riquezas”, diz o professor. O tempo era de regime militar e o mote era fazer crescer o bolo para depois reparti-lo. O bolo inchou em vez de crescer e, se houve partilha, ficou restrita a algumas classes. “O governo Lula corrige parte desse equívoco quando aposta nos programas de transferência de renda e em ações afirmativas.”
 
Sobre Goiânia, Dijaci coloca em pauta a questão da “matriz empresarial” da cidade, que facilita a concentração de bens e capital em poucas mãos. “As empresas têm geralmente poucos empregados e são, em muitos casos, familiares. Os dividendos acabam distribuidos de forma doméstica”, ressalta. Para o pesquisador da UFG, o fato de ter poucas indústrias também colabora com a má distribuição — uma fábrica, por exemplo, tem vários níveis de empregados, coisa que não há em uma empresafamiliar, em que os parentes ocuparão os principais cargos, fechando a porta da ascensão a quem não for do clã. “Nesse sentido, Brasília tem uma matriz muito diversa, contrata gente em vários níveis. E o mesmo se dá em Anápolis. Ambas distribuem melhor a renda que produzem”, conclui Dijaci.
 
Por fim, ainda nas costas dos ricos, outros fatores agravam a falta de distribuição e afeta mtambém o próprio poder público. “Os mais ricos poderiam distribuir melhor suas riquezas, têm margens de lucros imensas. Em vez disso, sonegam o que podem e concentram (riquezas) mais ainda, ao não pagar bem seus trabalhadores; como se não bastasse, ainda terceirizam o que for conveniente, precarizando as relações de trabalho”, diz Dijaci, que emenda: “A transferência de renda não deve ser exclusividade do poder público. Pagar imposto é o mínimo que deveriam fazer. Além disso, deveriam pagar melhores salários: basta comparar a média salarial em Goiás a outros centros.”
 
 
Ricos de Goiânia são mais ricos. Ou querem parecer ser
 
Alguns acham que Goiânia é uma miniatura do Brasil: haveria um contingente vivendo na miséria absoluta e outro com uma renda altíssima. A segunda parte é mais verdadeira que a primeira. A cidade atrai gente de todos os níveis sociais, inclusive milionários. Basta saber que, de acordo com dados do ano passado, a capital é uma das cidades que proporcionalmente mais importa carros no Brasil.
 
Para tirar a prova, basta proceder uma constatação prática: ir a uma avenida central de Goiânia e observar os carros que transitam para notar que, invariavelmente, não se passarão mais do que cinco minutos até que passe um automóvel de luxo —BMW, Mercedes, Lamborghini, Bentley, Chrysler, Maserati e outras marcas. A desigualdade social na capital goiana não é ortodoxa, tem um ingrediente a mais: é puxada para cima por uma elite de altíssimo poder aquisitivo.
 
Ou seja, mesmo que não haja — e não há — um Haiti por aqui, a desigualdade se torna irremediavelmente mais grave por Goiânia sediar algo próximo à hollywoodiana Beverly Hills: se os mais pobres não são miseráveis, os mais ricos são, sim, multimilionários. 
 
Lado a lado
 
Ao contrário do que há no Rio de Janeiro, onde a segregação é geográfica, nos morros, em Goiânia os pobres vivem ao lado dos ricos, mas fora dos muros destes: assim há o Residencial Vale dos Sonhos, de pessoas de baixa renda, separado apenas pela BR-153 do Condomínio Aldeia do Vale, um dos mais caros metros quadrados da capital. Da mesma forma, a estigmatizada Vila Lobó fica encostada no Parque Flam­boy­ant, a centenas de metros de apartamentos com quatro suítes, de valor acima de R$ 1 milhão.
 
“Goiânia tem seus contrastes, mas tudo passa também pela questão do enfoque”, diz o secretário municipal de Planejamento Ur­bano, o deputado estadual licenciado Lívio Luciano (PMDB).
 
É como um copo pela metade: há quem diga (a oposição) que ele está meio vazio e, a partir desse ponto de vista, Goiânia passa a ser a cidade mais desigual do mundo. Com esse argumento se questiona a alardeada qualidade de vida. Do outro lado, o de quem enxerga o copo meio cheio (por exemplo, a administração da cidade) pode ser feita a observação oposta: se Goiânia tem o mote da qualidade de vida como atração, isso traz o desafio de receber novos contingentes. De fato, questione-se quantos dos moradores chefes de família que moram nos bairros novos e com mais carência de estrutura são nascidos na cidade ou, pelo menos, no Estado: são poucos. Grande parte vem do Tocantins, do Maranhão, do oeste da Bahia ou de Minas Gerais. Estão aqui para tentar a vida. Go­iânia, como o copo, está sendo julgada pelas lentes (e interesses) de quem quer vê-la de certa forma. 
 
 
Análise
 
O notebook, o videocassete e a Ferrari
 
Ao chegar à casa dos meus pais esses dias, fui surpreendido com um pedido de nossa simpática diarista: ela queria que eu a ensinasse a mexer em pastas e arquivos. Não, ela não estava interessada em uma recolocação profissional em algum escritório. É que tinha ganhado, de presente de aniversário, um notebook e queria aprender a entender alguma coisa da dinâmica do equipamento.
 
A cena me reportou a 1995, quando, naquela mesma casa, eu e meus irmãos fizemos uma grande festa quando meu pai chegou com um videocassete Sharp na caixa: afinal, tínhamos sido contemplados em um consórcio de 24 meses! 
A geração mais nova pode não crer, mas alguns eletrodomésticos eram assim adquiridos até os primórdios do Plano Real, que, com o fim da inflação galopante, deu uma grande contribuição para que o quadro mudasse. Mas foi a partir do governo Lula e da política de inclusão de renda que o pobre sentiu o gostinho de poder consumir. Se houve o caos aéreo, isso se deveu à falta de estrutura do setor, mas também a uma crescente demanda. Se décadas atrás era luxo “andar de avião” — em muitos casos virava notícia em coluna social —, no novo milênio a classe C invadiu os aeroportos. Aquele que seria considerado pobre há algum tempo hoje tem carro. Ou, se ganha salário mínimo, anda de ônibus porque quer, já que os planos de crédito parcelam o valor de uma moto com prestações a perder de vista.
 
Hoje, em Goiânia ou qualquer outro lugar do País, o mais pobre tem direito a um programa de renda mínima. Nesse sentido, a capital do Estado não se difere de nenhuma outra cidade brasileira: os miseráveis, se os há pela cidade — e há — existem por uma série de fatores que vão além da simples equação eleitoreira que quer levar à culpabilização de quem está no poder municipal: os que vivem em situação de indigência padecem disso principalmente pelo vício em drogas, especialmente o crack.
 
O problema da desigualdade social por aqui, portanto, não está na base, mas no topo da pirâmide: minha tese é de que os 5% mais ricos de Goiânia são mais ricos do que os 5% mais ricos das demais capitais e grandes cidades. Isso fica claro ao observar a proliferação de carros de luxo pelas ruas centrais e a de condomínios horizontais, verticais e monumentais ao longo de­las. Se quem tem menos condições hoje em Goiânia pode ter um notebook, os mais ricos podem comprar sua Ferrari. E compram.

Fonte: Jornal Opção

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